Giselle com Ronny na Alemanha (Arquivo Pessoal) |
Quando eu vi pela primeira vez a história de Giselle Thurm por algum momento pensei que fosse apenas uma adaptação de alguma história infantil. Havia ali todos os itens necessárias para uma boa história: tinha a mocinha, o mocinho, a história de superação, um ambiente propício e até um certo vilão. O final feliz, porém, veio em partes: se na vida pessoal deu tudo certo (ainda bem), na parte esportiva faltou o grande prêmio.
Poucos, pouquíssimos conhecem a história dessa brasileira que em plena década de 80 ousou sonhar com os Jogos Olímpicos de Inverno. Muito antes de Isadora Williams, Elena Rodrigues, Alessia Baldo, Stephanie Gardner, Stacy Perfetti e Simone Pastusiak, foi ela que por muito pouco não garantiu a classificação olímpica na patinação artística no gelo para o Brasil.
Ela foi vítima de algo que eu, você e quase todos os brasileiros já sofreram em outras áreas: a burocracia. A falta de documentos aqui no Brasil, muito por conta da inexistência de uma confederação atuante na época, impediu que ela e Ronny, o representante masculino, conseguissem a vaga em Calgary, na edição de 1988.
"Foi tudo em vão?", questiona Giselle ao Brasil Zero Grau. Mas ela mesma responde na sequência. "Nem tudo, pelo menos. Acho que tudo isso fez parte de minha história e do meu destino. Se não fosse a patinação, hoje não teria a família linda que tenho e não estaria morando aqui", prossegue.
Durante competição (Arquivo Pessoal) |
Ela nasceu e cresceu no Rio de Janeiro em 1969. Gostava de andar com o patins de rodas e com 12 anos viu uma pista de patinação no Tivoli Parque, na Lagoa. O rink, porém, não durou muito e tudo indicava que seria apenas uma fase de adolescente.
Mas não. Logo em seguida construíram outra pista no Barra Shopping. Num belo dia, Giselle foi com a mãe fazer compras no local e viu uma menina fazendo piruetas e sendo orientada por um treinador. "Eu não acreditei! Implorei para minha mãe me colocar na mesma hora no curso. E desde lá esse vírus não me largou mais".
E era necessário muito amor realmente para suportar todas as dificuldades. "Tudo era improvisado e sem o mínimo de condições", afirma a brasileira. Precisou começando com aqueles patins na cor azul, típicos de shopping center e destinado a quem nunca mais irá patinar na vida. Foram meses até encontrar alguém que trouxesse um equipamento adequado do exterior.
Os treinos eram sempre divididos com o público que pagava para poder patinar por 30 minutos, uma hora e mal ficavam em pé, arriscando a segurança daqueles que almejavam algo a mais no esporte. Por conta disso, acidentes eram comuns e até no hospital Giselle foi parar por conta de cortes e cicatrizes. A tática era ir ao Shopping bem cedo sempre quando o colégio permitia e evitar as aglomerações.
Havia também a questão dos treinos. Até a década de 80 treinavam "figuras no gelo", considerado item obrigatório. Consistia em círculos na pista, usando a lâmina outside, inside, de frente, de costas, etc. Isso exigia muita atenção e equilíbrio e faltava tempo para treinar saltos e giros. Havia um treinador brasileiro (Roberto) e alguns estrangeiros apareciam para ajudar, mas o aprendizado de fato era assistir constantemente os vídeos das competições no exterior e tentar refazer no rink.
No alto do pódio (Arquivo Pessoal) |
Ela só queria saber de patinar e competir. Na década de 80, acredite, havia clubes de patinação no Rio de Janeiro, em São Paulo e outros estados (cenário inimaginável hoje em dia). Eles organizavam um Campeonato Brasileiro e Giselle sagrou-se bicampeã em 1984 e 1985.
Nessa ocasião ela conheceu um senhor alemão que morava no Brasil. Erwin Dietenhofer tinha planos de construir um rink com dimensões olímpicas no Rio de Janeiro. A ideia era desenvolver o hóquei no gelo, uma de suas paixões, no país que ele adotou para morar.
"Isso era uma oportunidade única. Finalmente uma pista de verdade! Ele começou a dar a mim e ao Ronny, campeão brasileiro por São Paulo, ideias para aperfeiçoarmos nossa patinação na Alemanha, pois ele tinha contatos com a federação de lá. Poderíamos aprender novas técnicas e competir no exterior e depois voltar com uma boa bagagem para ajudá-lo na construção e organização dessa pista. Ele nem precisou falar duas vezes".
Primeiro foi o Ronny em 1986 e um ano depois chegou o momento de Giselle embarcar. Começava aí a fase de adaptação e "de cair na real", nas próprias palavras da brasileira. Não foram poucas as dificuldades enfrentadas pela dupla no país europeu. Primeiro a treinadora que iria orientá-los estava viajando com o time alemão. Depois, a maior parte da técnica que eles tinham aprendido por aqui teve que ser mudado a pedido dos treinadores de lá. "Às vezes me achava uma iniciante", lamenta. Para quem era bicampeã brasileira, não deveria ser nada fácil realmente.
Mas seis meses depois, tudo mudou. Já acostumada e treinando cada vez mais, Giselle começou a ter esperança olímpica. "Treinávamos a todo vapor. Sabíamos que não teríamos chances de medalhas, mas o objetivo principal era sermos os principais brasileiros a disputarem os Jogos de Inverno e tentar fazer bonito em Calgary".
A ISU (União Internacional de Patinação) já havia dado o sinal verde, havia o apoio da federação alemã, mas faltava justamente a parte brasileira. Em 1987 não havia uma Confederação de Esportes de Inverno no país: a Associação Brasileira de Ski, embrião da CBDN, surgiu em 1989. Dietenhofer havia criado uma União Brasileira de Esportes e Hóquei no Gelo (atual Confederação Brasileira de Desportos Terrestres), mas faltava o reconhecimento perante ao COI.
"Tínhamos um prazo estabelecido para organizar tudo isso. Depois de inúmeras tentativas, cartas, advogados, etc. (na época não tinha internet nem e-mail...era tudo mais demorado!). Enfim, não obtivemos as papeladas necessárias no tempo certo e tivemos que nos resignar", afirmou.
Treinando (Arquivo Pessoal) |
Com o curso de comunicação social na PUC trancado, esperava-se que Giselle voltasse ao Brasil. Mas uma história dessa precisava de um final feliz. Conheceu o alemão Erhard Thurm e se casou com ele em 1990. Teve três filhos e administra com o marido o Hotel Ruebezahl em Schwangal, na Bavária. Ele fica ao lado do Castelo de Neuschwanstein, o mais famoso da Alemanha e que inspirou o logotipo da Disney. O dia em que eu realizar meu sonho e visitar a Europa, certamente passarei por lá.
Patinação artística para Giselle, hoje em dia, apenas quando os lagos naturais da região congelam no inverno. "É muito lindo patinar ao ar livre. Já em pistas de gelo fechadas ão tenho vontade nenhuma. Passei muitas horas de minha vida por lá".
Mas nos últimos meses voltou a sentir aquele sentimento que a envolveu em 1987 e que estava um pouco adormecido. Pouco mais de 25 anos depois, viu Isadora Williams conquistar o feito que ela chegou tão perto de realizar. "Quando li pela primeira vez sobre a Isadora, fiquei emocionada. Quase 27 anos mais tarde, alguém conseguiu chegar lá!".
Pode ficar tranquila, Giselle. Após lermos sua história, será nossa vez de ficarmos emocionados. E assim o Brasil Zero Grau encerra a série especial Pioneirismo, uma homenagem do Blog ao Dia Internacional da Mulher e reforço à campanha contra o fechamento da maior pista de patinação do Brasil. Como podemos ver, história é o que não falta para o país na patinação artística no gelo.
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