Cool Running!

Devon Harris (Reprodução)
Se você tem mais de 25 anos, certamente já viu ou ouviu falar do filme "Jamaica Abaixo de Zero". Lançado em 1993 pela Disney, passou nos cinemas daqui e logo entrou nas reprises do Sessão da Tarde, da Rede Globo. Aliás, foi onde eu tive contato com a obra e os esportes de inverno.

O filme de Jon Turteltaub conta a história da participação do primeiro time jamaicano de bobsled, em Calgary-88. Fez um inesperado sucesso tanto nos EUA quanto no Brasil e foi o penúltimo trabalho do ator John Candy, morto em 1994.

Apesar de todas as dramatizações peculiares a uma obra cinematográfica, aquela história é real, aconteceu. É um daqueles exemplos de superação e dedicação que a cada quatro anos (ou dois, se levarmos em conta o intervalo entre Jogos de Verão e de Inverno) toma nossas TV's, jornais e internet e nos enchem de esperança.

Vinte e cinco anos depois da participação histórica da Jamaica (que abriu caminho para mais países tropicais), 20 anos após o lançamento do filme e exatos 40 dias para os Jogos Olímpicos de Sochi, o Brasil Zero Grau traz a história de Devon Harris, membro do bobsled jamaicano em 1988 e que viaja pelo mundo para, como ele mesmo diz, fazer com que seu sonho inspire o sonho dos outros.


Pelé, atletismo e gelo

Devon Desmond Harris queria ser Pelé. Ele nasceu em Kingston, no dia de Natal em 1968 e cresceu num subúrbio da capital jamaicana. Apaixonado por esportes, logo criança começou a jogar futebol na rua com seus amigos e primos. A inspiração, como não poderia deixar de ser, era o futebol brasileiro, graças à proximidade continental e por ser tricampeão do mundo naquela época.

"A maioria da minha geração cresceu admirando o futebol brasileiro. Eu acho que tinha alguma habilidade, pois eu era chamado de Pelé pelos meus amigos. Claro que não havia comparação. Cresci numa vizinhança pesada e desde o início havia aquele sentimento de que havia mais coisa no mundo além dali e o futebol poderia ajudar. Eu sempre quis disputar os Jogos Olímpicos", comentou com exclusividade ao Brasil Zero Grau.

Mas não havia patrocínio para o futebol. Como acontece com alguns atletas brasileiros hoje em dia, na adolescência Devon sabia que era no Exército que ele teria o apoio e o treinamento necessário para buscar esse sonho.

"Foi realmente significante entrar no Exército. Eu me esforcei muito para conseguir estar lá. Havia muitas lições a serem aprendidas, como disciplina e perseverança".

Antes do bobsled, sonho com atletismo (Reprodução)
E lá teve contato com o atletismo, seu segundo amor esportivo e que é esporte nacional na Jamaica. Muito antes de Usain Bolt e toda uma geração de jamaicanos que batem recordes mundiais, Devon Harris corria em busca dos Jogos Olímpicos.

Sonhou com a participação em Los Angeles-1984, nos Jogos de Verão, "mas nunca estive realmente perto de realizar este sonho", confessou. Ele estudava e se alistou ao Exército naquele ano e pensou estar presente quatro anos mais tarde. "Eu poderia fazer parte do time em 1988, mas acabei fazendo parte do time de bobsled e foi mais legal", brincou.

Até porque por volta do início de 1987 o bobsled já era parte da vida de Devon Harris e mais três oficiais do Exército jamaicano. Os norte-americanos George Fitch e William Malone eram empresários no país caribenho e possuíam um trenó. Logo, resolveram montar uma equipe de bobsled sob o forte calor. 

Procuraram a equipe de atletismo, mas não obtiveram sucesso. Restou então o Exército. A ideia foi apresentada ao coronel Ken Barnes, que gostou da proposta e viu que o sonho olímpico de alguns casava com essa proposta maluca. O tenente Devon Harris era o principal deles e englobou também Dudley Stokes, capitão da Força Aérea, Michael White, reservista da Guarda Nacional e o engenheiro ferroviário Samuel Clayton. 

Treino de push da primeira equipe jamaicana (Reprodução)

Fizeram os possíveis atletas correrem cinco milhas todas as manhãs para entrarem em forma. Era realmente o casamento perfeito. "Vi que era uma oportunidade de alcançar meu sonho de disputar os Jogos Olímpicos", comentou, depois de vencer a resistência inicial. 

"Quando ouvi pela primeira vez eu achei ridículo. Eu lembro de ter dito que ninguém poderia me convencer a fazer aquilo de jeito nenhum. Não sabia quase nada sobre bobsled. Tudo o que eu sabia era um esporte muito rápido e perigoso. Mas quando eu pensei mais e mais sobre a ideia, eu fiquei mais consciente e vi essa oportunidade".

Assim, Devon Harris estaria preparado para sua segunda experiência no inverno. Isso mesmo, a segunda. Ao contrário do que todos pensam, ele viu neve em 1985, quando estava na Inglaterra. "Sentia-me flutuando em um pedaço do céu. Com o bobsled foi uma experiência formal. Na primeira descida eu tive a sensação de morte. Mas sobrevivi". 

Na elite

Não só sobreviveu como foi para frente com o sonho. A primeira experiência do quarteto foi em outubro de 1987, na Áustria. Os resultados não foram tão ruins e o que parecia improvável, aconteceu. A Jamaica conseguiu a classificação olímpica em Calgary.

Não foi a primeira vez que um país sem incidência de neve participou dos Jogos de Inverno, mas foi com o time jamaicano que a comunidade esportiva internacional passou a olhar com outros olhos para estes países.

Em 1988 (Reprodução)
Em termos de resultados, a primeira participação não foi tão boa assim. O trenó, pilotado por Devon, bateu na segunda das quatro descidas e não completou a prova, ficando de fora da classificação final. Mesmo assim, uma experiência única para todos os amantes do esporte e que deixaram os quatro jamaicanos bem conhecidos. 

"Eu não me via como uma celebridade. Mas o que me alegrava muito era como as pessoas apreciavam os atletas na Jamaica. Nós nos sentimos muito mal por termos batido na descida e por termos envergonhado nosso país. Mas as pessoas nos davam apoio e o governo nos felicitou pela conquista".

A experiência não foi boa apenas na competição. Como membro do Exército, Devon ainda vivia a Guerra Fria, que estava no seu fim naquele período. O ambiente na Vila Olímpica o chamou a atenção e foi sua principal memória daqueles Jogos. 

"Eu era treinado para acreditar que todos por trás de mim eram inimigos. Mas eu estava na elite olímpica com todas essas pessoas perseguindo seus sonhos também e eu percebi que eles eram seres humanos como eu. Nós tínhamos sonhos e aspirações similares. Foi isso o que mais me marcou: nós tínhamos algo em comum mesmo sendo diferentes. Isso me impressionou". 


Fama e evolução

Com uma história incrível dessa, a equipe jamaicana logo vendeu os direitos para realização de um filme. Lançado em 1993, "Cool Runnings" ("Jamaica Abaixo de Zero", no Brasil) serviu para elevar a equipe jamaicana ao status de legenda esportiva. 

Mas não que isso trouxe vantagens para os treinamentos da equipe verdadeira. Longe disso. Os membros da equipe creditam a evolução aos constantes treinamentos. 

"A nossa evolução veio no envolvimento com o esporte, aprendendo mais e aplicando nos treinos o aprendizado. O filme teve o papel de imortalizar isso. As pessoas não lembram dos Jogos de 1988 mas lembram do time. O filme talvez nos mostrou para três gerações à frente para tirar algumas lições de quanto esforço é necessário para se atingir um objetivo". 

Equipe de 1992 com o governador-geral da Jamaica (Reprodução)

Mais famosos e mais treinados, Devon Harris e a Jamaica retornaram em Albertville-1992 para a segunda participação olímpica. O quarteto terminou na 25ª posição e a dupla foi o 36º. Dois anos depois, em Lillehammer-1994, a grande surpresa: a Jamaica terminou na 14ª posição, na frente de EUA, Rússia, França e Canadá, potência do esporte. Devon, porém, não esteve presente nesta edição. 

Ele retornou apenas em 1998, já como civil (se retirou do Exército no fim de 1992 como capitão) e disposto a encerrar a carreira como atleta. A Jamaica foi a 21ª no quarteto masculino e 29ª nas duplas, sendo ele o piloto, na sua última prova olímpica. 

"Há várias razões para cada uma das Olimpíadas serem especiais. É como escolher o preferido entre seus filhos. Calgary foi muito especial por ter sido o primeiro, foi uma tremenda experiência. Mas todos foram especiais".

Já se passara dez anos de trabalho no bobsled e uma nova geração de jamaicanos estava surgindo. Com destaque para Lascelles Brown, a Jamaica conquistou o ouro no Campeonato Mundial de Push (largada) no bobsled em 2000. A dupla jamaicana ainda participou dos Jogos de 2002 e quebrou o recorde de largada da pista, mas ficou na 28ª posição.

Depois disso, porém, a Jamaica entrou numa recessão. Lascelles Brown foi para o Canadá, onde conquistou a medalha olímpica em 2006. A equipe jamaicana ficou de fora dos dois últimos Jogos e correm contra o tempo para pegar uma vaga em Sochi, daqui quarenta dias. 


Pelo Mundo

Aposentado das pistas, Devon Harris continuou ajudando a Federação Jamaicana do lado de fora. Alias, faz isso até hoje na parte motivacional e com estatísticas (Dudley e Nelson Stokes participam mais ativamente do dia a dia da equipe).

Mas a partir de 2001 ele resolveu espalhar pelo mundo a história de superação e perseverança que motivaram não só a equipe, mas todos que assistiram ao filme ou pesquisam sobre esta história. 

Numa de suas palestras pelo mundo (Reprodução)
Como motivador e palestrante, Devon Harris é contratado por empresas, organizações e entidades para falar mais sobre as dificuldades e a luta pelo sonho. Sempre com o tema "keep on pushing", um sentido figurado para "continue tentando", ele espalha lições. 

"O maior retorno que obtenho das palestras não é o dinheiro e sim quando alguém vem até mim depois e fala 'puxa, me senti como se você estivesse falando comigo, obrigado por ter dado esses conselhos' ou 'você mudou minha vida', ou ainda 'você me deu motivos para pensar'". 

E tudo isso graças a uma oportunidade improvável que surgiu lá em 1987 com o bobsled. O garoto jamaicano que queria ser Pelé, virou soldado e almejava disputar os Jogos Olímpicos de Verão, conquistou o mundo e representou seu país graças à neve.

"Hoje sou palestrante motivacional e 25 anos atrás nem imaginava isso. Achei que eu serviria sempre ao Exército Jamaicano, mas acabei competindo em três Jogos Olímpicos. Eu tive a chance de achar meu horizonte e todas essas experiências me deram base para viajar por todo o mundo falando para as pessoas que deveriam insistir em seus sonhos". 

Escreveu os livros "Yes, I Can" para crianças e a auto-biografia "Keep On Pushing". Em 2006 ele ainda criou a Fundação Keep on Pushing, que dá suporte educacional para crianças em zonas mais carentes pelo globo e é embaixador da Fundação Right to Play, organização internacional que conta com muitos atletas internacionais para defender o direito das pessoas de brincarem e praticarem esportes.


Conselho

Quando se fala do time jamaicano de bobsled é quase impossível não associar a equipe brasileira. Oriundos das mesmas condições, os dois países têm muito em comum para trocar experiências do que se supõe. Ainda que o Brasil tenha evitado essa comparação por muitos anos. 

"Conheço sim, eles são os bananas", brincou Devon quando perguntei se conhecia algo do bobsled brasileiro. Aliás, o nome que deverá ficar no passado, pois a CBDG faz votação para escolher um novo nome para o trenó brasileiro (tudo para evitar a imagem pejorativa que o termo tem no nosso país). 

Ele deu um conselho simples, porém valioso. "Não há nada tecnicamente em termos de corrida e competição que não saibam. As posições que eles precisam obter para atingir os pontos necessários são um desafio para países como o Brasil e a Jamaica. Mas meu conselho a eles seria focar na meta. Por mais difícil que seja, enfrentem todos os desafios e lutem por isso". 

Diferenças do filme

Agora chega a parte chata onde revelamos o que é mentiroso e o que é real no filme. Apesar de ser baseado numa história verídica, há muita ficção para dar aquele traço dramático necessário para cativar o público.

Capa do filme (Reprodução)
Aliás, quase toda a história foi modificada. No filme, o time foi formado por atletas jamaicanos que não foram para os Jogos de Verão e são coordenados por um técnico norte-americano. Na realidade, a equipe era militar e houve vários treinadores durante o percurso. 

Depois, não houve preconceito e uma barreira do COI (no caso do filme, a Aliança Internacional) com a participação jamaicana. Tampouco o trenó jamaicano chegou perto da medalha como se supõe na parte final. 

Ah, e depois da queda houve sim a caminhada da equipe com o trenó nos braços até a linha de chegada, mas não com todos aqueles efusivos aplausos (o Youtube tinha as cenas reais da imagem, mas o COI mandou retirar por violar direitos de transmissão, uma pena). Pedi ao Devon que comentasse mais sobre isso.

"No filme foi mostrado em exagero que as pessoas não gostavam de nós. Mas para ser honesto isso não aconteceu. Não houve alguém contra nós. Atletas geralmente não tratam uns aos outros daquela maneira. Havia apenas a curiosidade. Eles eram completamente contra à cor verde e não ficavam confortáveis em ver caras da Jamaica bem posicionados e competindo. Talvez esse seja um dos maiores problemas que tivemos. E nós nos sentíamos um pouco chateados com isso. Mas não havia ninguém contra a gente lá". 


Curiosidade

Aquela Olimpíada de Calgary foi única em produzir heróis improváveis. Além do time jamaicano de bobsled, houve a trajetória de Eddie Edwards, conhecido ironicamente como Mr. Magoo (aquele simpático desenho de um senhor que não enxerga, mas recusa a usar óculos) ou ainda como "águia".

Explico: Edwards era um dos últimos do ranking de esqui saltos e foi o único solicitante do Reino Unido para disputar a modalidade em 1988, sendo aceito pelo Comitê britânico.

O problema é que ele não tinha tradição nenhuma na modalidade. Acima do peso, sem patrocínio, equipamentos e totalmente cego sem seus óculos (competiu com eles, mas por conta do clima frio os óculos ficaram com névoa, imagine a cena), Eddie precisava usar seis meias para poder calçar as botas. Essa figura caricata logo conquistou o público pelo seu carisma. 

Os resultados, claro, foram ridículos. A melhor marca dele foi de 71 metros, numa prova onde o segundo pior salto foi de 86 metros. Uma marca ruim, sem dúvida, mas mesmo assim a "Águia" se tornou no atleta mais celebrado da disputa. 

Tanto que o presidente do COI na época, Juan Samaranch, citou Eddie Edwards na cerimônia de encerramento. "Aqui as pessoas conquistaram novos objetivos, novos recordes e alguns deles até voaram como uma águia", afirmou no discurso, fazendo o público aplaudir. 

Mas os pífios resultados, ainda mais se contrapostos contra os do time jamaicano (outra figura caricata daqueles Jogos), fizeram com que o COI e os dirigentes de Esqui Saltos endurecessem a classificação olímpica. Numa regra chamada "Lei Eddie Eagle", atletas de esqui saltos precisam disputar eventos internacionais e terminar entre os 50 melhores desses eventos.

Ouça áudio com a entrevista completa de Devon Harris ao Brasil Zero Grau!


Veja filme do Comitê Olímpico Internacional sobre a estreia jamaicana no Bobsled:

 

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